Um futuro não muito distante (Parte 3 – final)
Eram 6h45 da manhã de uma sexta-feira. Joshua estava a caminho do trabalho em um transporte sob demanda, chamado por Skywalker, o sistema operacional do seu apartamento inteligente. Diferente da última noite, em que voltou para casa a bordo de um veículo autônomo, desta vez Joshua tinha companhia.
Bom dia, amigo! – exclamou Peter, o motorista entusiasmado. Bom dia… ̶ respondeu Joshua, sem o mesmo entusiasmo. Você é o primeiro cliente do dia, obrigado por preferir um motorista humano – disse Peter, com sinceridade. Ele era caixa em um supermercado e prestava serviço como vigilante em um condomínio durante as noites. Entretanto, devido ao advento dos supermercados inteligentes, que não possuem caixa, e dos sistemas inteligentes de vigilância (câmeras, sensores e drones inteligentes), Peter havia perdido seus dois empregos.
Ser motorista de aplicativo era uma boa opção, afinal de contas, a demanda era crescente, principalmente por dois motivos. Em primeiro lugar, havia um grande público, geralmente das gerações anteriores, que preferiam motoristas humanos. Em segundo lugar, as novas gerações, nascidas em um mundo conectado, não queriam mais comprar carros. Para o jovem moderno, o acesso era mais importante do que a posse. E isso não era apenas com veículos. O mundo moderno era uma grande locadora de tudo.
Joshua ouviu pacientemente as histórias de Peter. Ao chegar ao destino, saiu do carro e recebeu uma notificação do aplicativo de transporte, que pedia para avaliar o serviço. Sorriu e deu nota máxima ao seu novo amigo.
Ao entrar na sede da Supernova, empresa de consultoria jurídica, foi saudado, em forma de holograma, por Abraham, a inteligência artificial (IA) que personificava a organização. Apesar de normalmente trabalhar remotamente, naquele dia o seu chefe, que não era um entusiasta do trabalho remoto, fez questão de reunir os funcionários. O objetivo era proporcionar um pouco de interação entre seus colaboradores e, quem sabe, um happy hour após o expediente.
Joshua era auditor de viés algorítmico (AVA). Suas duas graduações, Direito e Análise e Desenvolvimento de Sistemas, além de sua grande experiência como advogado de defesa de direitos digitais, haviam-lhe proporcionado as condições necessárias para exercer essa nova profissão. De fato, os algoritmos estavam por toda parte, quantificando o mundo real e transformando as relações humanas em uma espécie de utopia tecnocrata.
O trabalho de Joshua envolvia a criação de protocolos e cenários de teste de algoritmos de IA considerando aspectos éticos e legais. O objetivo era identificar características como racismo, etarismo, homofobia, misoginia e outros tipos de discriminação e enviesamento.
Naquela manhã, Joshua e sua equipe haviam encontrado algo intrigante em um algoritmo de IA de uma empresa de recrutamento. Quanto mais próximo um candidato morava de um certo bairro periférico, menores eram suas chances de ter seu currículo analisado, não importando suas qualificações. Fez o laudo e informou à equipe de desenvolvedores, que se comprometeu a analisar esse comportamento excludente.
No fim do dia, já em casa, decidiu ouvir música para relaxar. Foi quando começou a divagar sobre como a humanidade havia se tornado dependente das tecnologias modernas. O dataísmo, a religião dos dados, termo criado pelo historiador Yuval Noah Arari, havia se tornado a expressão máxima da filosofia materialista, conduzindo a humanidade à IA, o deus do presente século.
Nota do autor: A imagem em destaque foi gerada pela tecnologia de Inteligência Artificial Generativa Leonardo.ai.
Conto publicado originalmente na coluna Fatecnologia, do Jornal de Jales, no dia 06/08/2023.
