Big Brother chinês e o fim da democracia.
Um dos meus livros favoritos é “1984”. Escrito pelo jornalista britânico George Orwell (1903 – 1950) e publicado em 1949, a “distopia orwelliana”, como ficou conhecida a obra, denunciou os absurdos do totalitarismo, além de popularizar termos como “duplipensar” (defender duas ideias opostas), “novilíngua” (restringir o pensamento por meio do resumo da linguagem falada e escrita), “crime de pensamento” e, o mais famoso deles: “Big Brother”. O Estado opressor retratado em “1984” é controlado por um partido único que não permite liberdade de expressão nem individualidade. Os cidadãos não passam de “religiosos” que prestam um “culto intelectual” ao Big Brother, um ditador invisível que talvez nem exista. O “Grande Irmão” é a personificação do Estado e manifesta sua onipresença por meio da “teletela”, um dispositivo presente em todos os lares, capaz de filmar e, ao mesmo tempo, transmitir a programação oficial do governo. Dessa forma, o cidadão é vigiado 24 horas por dia, fazendo com que sua privacidade e o seu direito de ir e vir tornem-se propriedades do Estado. Coisa de ficção, não é mesmo? Definitivamente, não!
Recentemente foi implantado na China um moderno sistema de circuito fechado de TV. Trata-se de 170 milhões de câmeras instaladas por todo o território do maior país da Ásia Oriental, e outras 400 milhões que deverão ser instaladas até 2020. As câmeras são dotadas de inteligência artificial e, além de usar sofisticadas técnicas de reconhecimento facial, são conectadas ao banco de dados da polícia, permitindo identificar suspeitos e até comportamentos criminosos. Além de estimar o gênero, a altura, o peso e a idade de um cidadão apenas processando uma imagem, esse sistema consegue associá-lo a outras informações relevantes, como o veículo que ele utiliza, os locais que ele mais frequenta, as pessoas que ele encontra com frequência e outras informações que fazem a privacidade parecer apenas uma exótica palavra presente em uma poesia lírica. No futuro, a ideia é ir além da identificação, ou seja, pretende-se prever crimes, lembrando o filme Minority Report (2002), dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Cruise.
O correspondente da BBC na China, John Sudworth, resolveu testar a eficiência do “Big Brother Chinês”. Ele foi até a cidade de Guiyang e teve seus dados cadastrados como um suspeito no banco de dados da polícia. Após isso, ele foi andar pela cidade. Depois de caminhar por sete minutos e passar por três câmeras, foi abordado por quatro policiais, o que mostra que, além de preciso, o sistema é extremamente rápido (Veja o vídeo no final dessa postagem e surpreenda-se!).
Apesar de o governo local afirmar que os dados ficarão guardados em absoluto sigilo, sendo usados apenas visando à segurança pública, diversos cidadãos chineses acreditam que esse sistema é mais uma poderosa arma contra a liberdade de expressão e uma ferramenta para dominar o povo pelo medo. Como o governo chinês não possui uma corte independente, o projeto não precisou ser votado por representantes do povo, como aconteceria se o país fosse uma democracia. Assim, o sistema de vigilância alcançará a onipresença muito em breve, gerando mais discussões sobre a privacidade do cidadão, não só na China, mas também em todo o mundo.
Uma tecnologia dessa magnitude ser usada para fins de segurança pública é algo que certamente poderá impactar positivamente a sociedade. Entretanto, se for usada para fins de controle e manipulação política, podemos decretar de vez o fim da democracia. Assim, teremos a certeza de que Orwell não apenas escreveu, mas sim profetizou a obra “1984”. A questão é muito complexa e vale um estudo extremamente aprofundado, principalmente em dados históricos daqui a 10 ou 15 anos, quando teremos uma ideia do real impacto desse sistema na vida dos chineses. E se, ou melhor, e quando outros países adotarem o mesmo sistema? Já imaginou isso no Brasil?
Texto publicado originalmente no Jornal de Jales – coluna Fatecnologia – no dia 24 de dezembro de 2017.